Esse texto é uma prova de que, para falar de Exu, não precisa ser
quimbandeiro. Apesar de que o autor enfoca mais a questão umbandista
(Umbanda Racional), neste caso considerando a presença de Exu na
Umbanda, ainda assim foi um dos melhores apanhados que tive na Web nos
últimos tempos.
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Exu no Brasil foi associado ao
mal, ao demônio, à rua e à marginalidade, revelando-se um dos aspectos
mitológicos do imaginário nacional, desta forma, parte da Estrutura
Social do país.
Ocorreu a cisão da arte do kimbanda,
enquanto feiticeiro ele é posto na Quimbanda e todo seu saber é relido
na sociedade brasileira, transformando a Umbanda em magia branca e a
Quimbanda em magia negra. A Quimbanda manteve o princípio das tradições
de feitiçaria dos descendentes africanos enquanto a Umbanda procurou
caminhar na lógica “civilizada” dos valores ocidentais.
Nesta
oposição entre “tradicional” e “moderno” Ortiz vê o contraste entre a
cultura branca e a cultura negra. Como na análise feita por Reginaldo
Prandi, a lógica Umbandista é a lógica racional, os Orixás Umbandistas
são todos entidades brancas, porém Exu foi o único que conservou seu
passado negro, ele é o que resta de negro e de afro brasileiro, de
“tradicional” dentro da sociedade brasileira contemporânea. Desta forma,
eliminar o “mal” seria livrar-se do passado afro-brasileiro, para se
integrar na sociedade de classe.
A Umbanda, por um lado, pode ser o
extremo desta conseqüência, ao incorporar valores Kardecistas, que se
baseiam na ética e moral cristã, acabou por distorcer a imagem de Exu
perante os brasileiros. Ela manteve os Orixás, o rito dançado, o transe
da incorporação de divindades e antepassados, porém todos engendrados a
partir da moral ocidental. Na visão africana, o bem e o mal não existem
tão segmentados como para nós, e o uso da magia e do feitiço seria
livre, não importando a intenção de seus agentes, ao contrário da moral
umbandista.
Mas frente à Umbanda e dentro do mesmo Terreiro surge
na calada da noite em cerimônias fechadas e secretas a Quimbanda, um
território criado para Exu, tornando-se uma negação ética para a
Umbanda. A Umbanda escondeu Exu na Quimbanda para agradar os olhos da
sociedade brasileira, influenciada pelo espiritismo fez Exu ter um
aspecto de humano desencarnado. Ele seria agora o espírito dos
marginais, bandidos, assaltantes, assassinos, ladrões, traficantes,
figuras ruins, gente do mal.
Exu, representante na África das
relações sexuais e da fertilidade, dentro da moral cristã tornou-se um
demônio degenerado, libidinoso e carnal. Aos poucos essa característica
foi sendo esquecida na divindade, e simultaneamente surgiu a figura da
Exu feminina, a Pombagira. Enquanto mulher ela é vista como portadora do
pecado em nossa sociedade cristã, passando a representar a depravação
sexual assim como o espírito desencarnado das mulheres da vida,
prostitutas, mulheres de bandidos e etc.
QUEM É EXU
Exu
mantém as categorias do pensamento africano, preservando a dialética do
eu social e individual. No que diz respeito ao social Exu faz a ligação
entre os inúmeros seres e categorias existentes e é também o princípio
da existência individualizada, enquanto força que reside em cada
ser/indivíduo, o motor de nosso destino pessoal; cada um de nós carrega
interiormente como força que conduz e regula o nosso destino.
A
maldade está no ser humano, assim as tendências individuais reprimidas
socialmente podem se manifestar de uma forma desejável e livre, já que o
culto a Exu no Brasil propicia a segurança e a aceitação social do fiel
dentro da religião, liberam-se a agressividade, a impulsividade, a
prostituição, o homossexualismo e etc. A noção ocidental brasileira
separou magia branca e a magia negra, porém a magia na África tribal era
tida como moralmente neutra, por isso a maldade estaria no ser humano.
Exu serve como entidade protetora e de combate ante as relações sociais
conflitantes, Exu serve aos “excluídos”, “desajustados” e aos
“marginais”.
Alguns mitos falam da desobediência de Exu às ordens
de Olorum, mudando assim a ordem das coisas, seria ele próprio a
personificação do desafio e do deboche, como no mito em que muda o Sol e
a Lua de posição, entrega aos homens a possibilidade de
autodeterminação, quebrando as normas sociais, introduzindo a desordem e
a possibilidade de mudança.
A diferença de opiniões a respeito de
Zé Pelintra nos revela a diferença entre o Candomblé e a Umbanda. A
primeira procura preservar a memória africana enquanto a Umbanda,
religião surgida na sociedade urbana brasileira, o aceita como uma
entidade relida e adaptada nesse meio urbano, mas com elementos de
descendência africana, a própria imagem de Zé Pelintra é a do
afro-brasileiro urbano, que encontrou na boemia uma forma de solução
social.
Permitam-me um parêntese: Eu sempre pensei
que Zé Pelintra nascera do ventre de uma índia, sendo filho de homem
branco. Mas ele joga capoeira, isso é fato! Será mesmo que ele é
“afro-brasileiro”. (..?) E os negros que abandonam sua cultura, viram
brancos?
Podemos afirmar que no Brasil persiste o
elemento africano da divindade de Exu, (brincalhão, mensageiro e
múltiplo), como símbolo afro-brasileiro, é um herói ambíguo que protege e
amedronta os homens. Entretanto, pode se dizer que estas estruturas não
são estáticas e que dentro da sociedade nacional houve uma
reinterpretação da divindade, mantendo a sua essência simbólica.
No
ocidente o universo é visto como uma máquina regulada (Newton), e as
leis estáticas devem ser compreendidas pela razão humana, na África o
universo e o cosmos são concebidos de maneira oposta, baseiam-se nas
ações e relações entre os fenômenos, num processo dialético de
equilíbrio e desequilíbrio, provocado pelas forças contidas neste
processo, a ordem e a desordem se inter-relacionam fazendo o movimento
necessário para o desenvolvimento do mundo.
Exu seria o princípio
cósmico dessa dinâmica caótica, transportando o axé que está presente em
todos os setores do mundo (animados e inanimados), mantendo a
comunicação entre os diversos setores do universo, provocando desordem,
ora a ordem, sustenta o funcionamento do cosmos. Encontra-se ele nos
domínios de Ifá, o deus responsável pelo destino (oráculo), traduzindo
as mensagens dos deuses aos homens, de Ossaim, divindade responsável
pelas ervas, auxiliando-a a fixar o Orixá na cabeça dos fiéis através
destas ervas, no reino dos mortos (eguns), Exu os auxilia, permitindo
aos eguns o acesso ao corpo das crianças que vão nascer.
Mesmo na
Umbanda, onde houve uma apropriação da religião africana de uma forma
mais ocidentalizada, a continuidade africana é presente, principalmente
em relação à magia, utilizada na macumba. A divindade africana converge
com a Estrutura Social do país nas relações sociais mais objetivas e nos
simbolismos, nos nossos valores. Exu mora na rua, no perigo, em um
mundo ambivalente onde o brasileiro mantém relações igualmente ambíguas,
um lugar onde não existem relações contratuais, é o ser inerente a esta
rua, representa a boemia, a malandragem clássica dos anos 30, Zé
Pelintra é a representação dessa dimensão de nossa sociedade, sua imagem
é a de um mulato, vestido com seu terno, chapéu e sapatos brancos, vive
o “nem lá e o nem cá”, em um país cujas relações de compadrio continuam
presentes em nosso cotidiano, onde a racionalidade oprime e subjuga
através de leis que contêm elementos de controle social.
No
Brasil, Exu transformou-se num malandro, um herói ambíguo, como bom
afro-descendente, que foge as regras opressoras do universo social
brasileiro. Zé Pelintra é um malandro, inverte o sistema em proveito
próprio, um sistema que inicialmente apenas o deixaria numa posição
subalterna e exploratória.
NESTE CASO, O AUTOR ESTÁ CITANDO ZÉ PELINTRA COMO EXEMPLO, MAS NA VERDADE, ELE SE REFERE A TODAS AS ENTIDADES DA QUIMBANDA.
Mas
Exu também representa outros ‘marginais’ de nossa civilização, como os
Exus baianos configuram a situação do imigrante nordestino, que não
encontrando no sul do país emprego e melhoria social, transforma-se em
um delinqüente, descritos na pesquisa da autora como negros, revoltos,
sofredores, violentos e vingativos.
Em um mundo onde o compadrio
continua presente, herança do mundo rural, encontrar o “padrinho” na
cidade torna-se difícil, sentindo-se sozinho e desprotegido o fiel acha
em Exu uma relação mais próxima. Substituindo o homem influente, agora
ele é o novo protetor do indivíduo isolado e sem destaque pessoal que
mora nos subúrbios dos grandes centros urbanos brasileiros. Exu também é
a mulher excluída, é a Pombagira, a prostituta que auxilia os
umbandistas a superarem as regras ditadas pela moral da sociedade sobre o
amor e o sexo, recebendo presentes femininos em suas oferendas como
batons e panos caros, Pombagira realiza os desejos mais íntimos e
proibidos dos fiéis.
O culto a Exu representa, além de tudo, a
possibilidade de superação de tendências individuais reprimidas pela
sociedade dominante. Exu ampara a subversão de certos valores,
possibilitando a aceitação social de determinados tipos de
comportamentos combatidos pela moral cristã da sociedade nacional. A
assimilação ao demônio ocorre devido a essa motivação à libertação aos
valores tradicionais de nossa sociedade.
Exu é um mensageiro, um
Hermes africano, exige um salário ritual, ele não tem a maldade
congênita do demônio, sua reação depende da relação que está sendo
travada com a divindade. Satanás não protege a casa de ninguém, Exu,
antes de qualquer coisa, também é um guardião, os deuses africanos mudam
de temperamento, oscilam conforme a oferenda recebida, ao contrário do
diabo cristão que é imutável.
Na África não existe um deus apenas
mau. O conflito e o encontro entre a racionalidade ocidental e a
racionalidade africana se dão também em relação ao contexto histórico e
social da urbanização, assim como no espacial, ou seja, a cidade. A
secularização e o processo histórico levaram a divindade a caminhar da
zona rural para a cidade, ela veio junto com os imigrantes, motivado
pelo processo de exploração do campo, porém ao chegar à cidade se
reorganizou, se adequou ao novo meio espacial e social. As encruzilhadas
das ruas urbanas foram habitadas pelos Exus, os quatro pontos cardeais
da cosmologia africana continuam presentes na cidade, nas encruzilhadas
condensam-se as forças do cosmos, por ali passam as forças do mundo e
todos por ali passam, e agora, no contexto urbanizado, a pé, de ônibus
ou de carro.
Exu também passou a ser cultuado no cemitério
metropolitano onde o conflito com outras religiões passa a ser
inevitável. Assim o Candomblé e a cidade relacionam-se através do
diálogo entre os dois universos. Esse diálogo permite que os deuses e os
ritos se transformem para ocupar a cidade, e a cidade os recebe como
integradora e receptora de inúmeros grupos étnicos.
A vida no
ambiente urbano da metrópole possui múltiplas faces, e essa condição
inexata da pluralidade da cidade auxilia a vivência do Candomblé nesse
espaço. A ruptura entre magia e racionalidade não se faz existente, o
que ocorre, porém é uma continuidade pelo diálogo entre as partes. A
vida na cidade moderna é multidimensional, criando possibilidade para a
afirmação do Candomblé nesse espaço.
Exu, ser da liminaridade,
está na cidade e no campo, está na África e no Brasil, entre o profano e
o sagrado, entre a luz e a sombra, são crianças que nada sabem,
espíritos dos que morreram e continuam ligados aos vivos, humano e deus,
humano e bestial. Viver na liminaridade é estar próximo à morte, é
estar no útero, a liminaridade é a invisibilidade da penumbra, a
escuridão, a bissexualidade, as regiões selvagens, o eclipse e etc.
Assim é Exu e desta forma ele faz tudo funcionar, a vida se desenvolver,
porque mantém o elo entre as partes do mundo.
Compreender Exu é
entender a filosofia africana, sua noção de mundo, que fala em Oxalá
como divindade andrógina, filho do criador máximo Olorum. Oxalá se
transforma em Oduduá e Obatalá, respectivamente feminino e masculino,
que ao se separarem criou respectivamente a terra e o céu (o mundo foi
criado a partir de uma ruptura), a união dos dois seria representada no
Terreiro, por um poste central, um pênis metaforizado que une céu e
terra, macho e fêmea.
A partir da ruptura de Oxalá andrógino em
dois, o mundo é formado, o caos estaria na essência deste mundo, o ato
sexual entre o homem e a mulher seria o resgate dos momentos primordiais
da criação, e Exu enquanto comunicador promove a união sexual,
(representado pelo poste central, ou pelo Iroco, a árvore sagrada), que
fará as crianças nascerem, a vida se desenvolver e o mundo caminhar sem
nunca acabar.
Por esse motivo Exu liga-se ao sexo e aos prazeres
da carne, a luxúria e a união sexual promotora da vida. Podemos dizer
que sociedade brasileira, herdeira do sistema escravocrata, promoveu e
promove o conflito social, em suas relações de subordinação e dominação,
o afro-descendente enquanto etnia foi violentado e explorado – ao
contrário de outros povos que colonizaram o país, como portugueses,
japoneses, italianos, espanhóis, judeus e etc, que puderam ter suas
estruturas e valores preservados, seus hábitos, sua forma familiar, e
que antes de tudo, vieram por espontânea vontade para o Brasil – os
negros foram trazidos à força, seus valores, sua organização foram
vilipendiados pela cultura européia aqui estabelecida, mas a ambigüidade
africana foi a força que manteve a resistência e a permanência da
religião, portadora legítima da filosofia cosmológica negra.
Exu é
a resistência frente à cultura branca, Exu é a divindade guerreira,
soldado de Ogum, que socorreu seus descendentes da violência do mundo
branco, e também os defendeu com sua magia protetora. Por isso Trindade
destaca que Exu, visto pela ideologia dominante é tido como um perigo,
sempre pronto a confrontar a ordem. Sua prática na Quimbanda desperta na
memória coletiva a reprodução do passado escravocrata. Exu –
negro-diabo representa as práticas mágicas dos escravos contra os
senhores, uma imagem associada ao mito bíblico em que o diabo representa
o desafio ao poder, tudo aquilo que subverte pela magia a ordem será
visto como mal, porque além de tudo subverte a ordem social.
Exu
nada mais é que o poder dos “fracos”, a resistência africana, a
divindade complexa que em sua lógica faz o mundo funcionar, as coisas se
moverem. É o elemento africano presente e determinante na vida de
muitos brasileiros, negros ou não, vivo no culto do Candomblé e na magia
umbandista. Exu, antes de tudo, é um patrimônio nacional que se impõe
aos outros valores excludentes da vida brasileira, como o cristianismo
católico e evangélico ou ao cientificismo das academias que insistiram,
por um significativo período de tempo, em colocar o negro e o indígena
em uma posição inferior, baseados por teorias Darwinistas e
Evolucionistas. Exu se configura como resistência, faz frente à “ordem” e
ao
“progresso” positivista das instituições nacionais, Exu é o não-cartesianismo, é a parte não ocidental da cultura brasileira.
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