Provavelmente
uma das manifestações divinas mais difíceis de se entender é a
dualidade. O pensamento ocidental, maniqueísta, calcado em valores
cristãos – devidamente distorcidos de acordo com interesses políticos e
econômicos ao longo da História – estabeleceu um padrão de pensamento em
que existem duas forças antagônicas: o bem e o mal, sempre em constante
batalha pelo domínio do mundo e da alma de seus habitantes. Assim, tudo
que não segue a estética e a moral ocidental-cristã é imediatamente
associado à sua antítese: as forças maléficas regidas por seres do mal,
chamado de demônios.
Esse
tipo de pensamento traz em si um paradoxo, já que o próprio livro
sagrado do Cristianismo afirma que Deus é onipresente. Estando em todas
as partes, Deus estaria também nas regiões trevosas da espiritualidade –
regiões que muitos tomaram por costume chamar de inferno.
Então
Deus estaria no inferno? Parece uma heresia total fazer tal afirmação,
mas sendo Ele um ser onipresente, deve (ou deveria) estar em todos os
lugares.
A
crença de um inferno de penas eternas e governado por um ser
excepcionalmente maldoso também faz parte do imaginário cristão e,
dentro desse raciocínio contraditório, não haveria lugar para Deus nessa
região – mesmo sendo Ele onipresente (?).
Dentro
da filosofia que norteia o pensamento umbandista, descartamos essa
idéia de inferno. Admitimos a existência de regiões espirituais
trevosas, densas, onde se encontram aqueles espíritos que não atingiram a
elevação moral esperada, elevação essa que pode ser conquistada um dia,
não necessariamente através de expiações, mas também do trabalho árduo
na espiritualidade. No entanto, nessas regiões ainda reina uma espécie
de barbárie espiritual, já que os valores morais de seus habitantes não
são os mais elevados, necessitando assim de alguém que controle suas
ações, não permitindo que outras esferas (como a dos encarnados, por
exemplo) sejam alvos dos ataques e obsessão desses espíritos. É nesse
contexto que começamos a entender o papel dos Exus, os guardiões tão
incompreendidos e injustiçados, que atuam como agentes da Lei e da Ordem
dentro desse princípio da dualidade divina. Entender Exu é entender o
próprio funcionamento da Lei Maior.
Antes
de qualquer coisa é preciso saber a diferença entre o Orixá Exu e o Exu
Guardião, da Umbanda. A palavra Exu, que significa “Esfera”, remete aos
cultos africanos e ao Orixá de mesmo nome. Como bem sabemos, por
diversos fatores históricos, houve no Brasil um processo chamado
sincretismo, através do qual as divindades africanas foram associadas
aos santos católicos. Assim, Iansã, por exemplo, que é a divindade dos
raios e das tempestades, foi sincretizada com Santa Bárbara, já que essa
santa também é associada aos raios e trovões. Ogum, o Orixá guerreiro,
foi sincretizado com São Jorge, o patrono militar dos católicos, e assim
por diante. No entanto, com o Orixá Exu houve, ainda dentro do
sincretismo, um processo de demonização. Sendo Exu a divindade ligada à
fertilidade, à sexulidade e à virilidade – inclusive carregando, em suas
representações, um cetro em forma de falo – e tendo uma personalidade
um tanto rebelde, como nos contam as itans (lendas africanas dos
Orixás), não tardou para que fosse associado ao demônio
bíblico/católico. Assim, desde o princípio, Exu foi temido, e
provavelmente gostou disso, levando-se em conta seu caráter irreverente.
Apesar
da confusão em torno da natureza de Exu, não podemos esquecer e nem
desprezar sua importância dentro do panteão africano e de seu
funcionamento, já que ele atua como “mensageiro” ou “intermediário”
entre os homens e os Orixás.
Nos
cultos de Umbanda também encontramos Exu, porém não na figura de um
Orixá, e sim de um espírito Guardião, um desencarnado, que viveu em
Terra e procura, através do trabalho na espiritualidade, alcançar o
progresso moral. Também associado a figuras demoníacas, o Exu da Umbanda
é um valoroso trabalhador, que indiferente a essas interpretações
calcadas em visões preconceituosas, segue perseverante no cumprimento de
sua tarefa.
O
papel do Exu numa gira de Umbanda é de fundamental importância,
realizando a segurança do terreiro – imaginem quantos kiumbas (espíritos
trevosos e zombeteiros) atacariam uma tenda de Umbanda a fim de
atrapalhar seus trabalhos, se não fosse a presença dos Exus, trancando a
sua passagem. Em casos de descarregos, também são os Exus os principais
agentes, pois cabe a eles a tarefa de encaminhar cada espírito, seja um
pobre sofredor desorientado, ou um perigoso obsessor ao seu local de
merecimento e/ou tratamento.
Exu
também é o agente da justiça kármica, sendo sua tarefa levar a cada um o
que lhe é de direito ou merecimento – por isso também a confusão em
torno de seu caráter, já que ao coração humano é muito fácil aceitar o
que é agradável, mas muito difícil entender que os revezes da vida
muitas vezes são resultado de nossas próprias ações.
Ao
contrário daquilo que falam sobre eles, os Exu são fiéis amigos, sempre
dispostos a ajudar seus protegidos, mas também exigindo uma conduta
deles, pois são extremamente rigorosos.
De
uma forma bastante simplificada, podemos entender o Exu como uma
mistura entre o carteiro e o gari, pois ele traz aquilo que deve ser
entregue e varre aquilo que deve ser levado
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